Pertencimento

Jess Vieira
4 min readJul 18, 2021

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Texto curatorial para Exposição Individual de Larissa de Souza pela Galeria Hoa

A reza de mãe, o conselho de vó, a brincadeira entre crianças, a dança com chamego se traduzem em fé, ancestralidade, infância e afeto abordadas como temáticas transbordantes e convidativas nas telas de Pertencimento, individual da artista autodidata Larissa de Souza, que ainda quando menina vivenciou a desigual e excludente maneira de habitar em uma metrópole como São Paulo. Viu a mãe, Isa, a avó materna, Dona Maria de Lourdes e outras mulheres ocuparem casas abandonadas e construírem comunidades em que se mantinham seguras e fortalecidas, resistindo à solidão e às políticas públicas inexistentes para mães solo, periféricas e pretas. A artista evoca na tela A reza da mãe, a benção e o cuidado que sua mãe devotava a seus filhos, a presença da mão protetora em A benção das crianças rememora também outras mães pretas que pedem proteção divina para sua ascendência todos os dias.

Em suas obras, a artista materializa figuras que habitam sua memória com uma amálgama de história real e projeção de um futuro de trocas potencialmente positivas de afeto, que muitas vezes desejou reconhecer, mas não viu, com frequência, no convívio entre pessoas nesses espaços coletivos comunitários em que viviam majoritariamente pessoas pretas, personagens ativos que protagonizam suas telas, enquanto expõe suas subjetividades e sentimentos, algo historicamente negado a população preta na sociedade brasileira. Nas obras há uma restituição de humanidade quando o foco é sentir tudo que se pode e não só sofrer em um cenário socialmente invisibilizado. Quando intitula o tríptico oval Um amor para dançar, a artista promove mais uma vez o encontro da palavra imagética com a imagem pictórica, seus títulos se entrelaçam com a imagem promovendo uma experiência ampliada dentro da observação, pessoas pretas estão se amando enquanto dançam em cenários que encenam casas muito similares a de famílias afrodiaspóricas brasileiras.

Larissa não habita sua criação sozinha, traz a presença da avó materna e da mãe, mulheres que simbolizam força, acolhimento e sabedoria para ela. E não nega suas inquietações frente ao que lhes foi sistematicamente roubado, o direito de fala e a habitação principalmente, a artista consegue abordar questões sociais urgentes para a população negra de maneira subjetiva e reflexiva. Diante de Pertencimento é possível ser absorvida por uma atmosfera de vida que aborda tristeza e alegria com pureza e legitimidade. “Qual é o nosso lugar no mundo?” Interpela Larissa frente às lembranças de não se sentir pertencente ao bairro de classe média em que morou em uma ocupação, a escola em que frequentou com crianças que tinham acesso a um universo totalmente diferente do seu e a outros espaços públicos e privados em que muitas vezes se sentiu repelida a não ocupar e não existir, a essas pressões sociais, a artista responde com um olhar ritmado e prazeroso para dentro de si e o transmite na obra Há riquezas dentro de mim quando se mostra para o mundo indo além de pertencer, mas também permanecendo nos lugares em que adentra e constrói hoje.

Em uma criação afrodiaspórica, a artista prova que há beleza e abundância no cotidiano e na vivência de pessoas pretas, nas trocas familiares, nas construções diárias, nos detalhes dos afazeres. Como retrata a obra A escolha perfeita, em que relembra a avó escolhendo o feijão, tão minuciosamente que por muito tempo a fez acreditar que a escolha fazia o feijão da avó ser mais gostoso. As sutilezas nesses atos não escapam aos seus olhos e em Pertencimento, ganham materiais experimentais por meio de um fazer intuitivo com bordado, espelhos, viés de costura, búzios resultado de uma criação livre que reflete a relação da artista com sua obra. “A arte me acolheu. Através dela, eu consigo construir um lugar onde eu possa pertencer.” diz Larissa.

Há uma estética mágica em Pertencimento, diálogos em construção, figuras humanas que tem nome, histórias vibrantes e graça, A mulher que vê a lua de dia é a mais bela é a obra central em que Larissa se debruça sobre as trocas com sua avó, “Lembro da minha avó ser uma mulher bem vaidosa.

Ela gostava de perfume, esmalte, ouro… Sempre quando podia, me presenteava com algum brinco ou colar. Fui criando o mesmo gosto que ela. Acredito até que essas jóias e adornos que coloco em meus personagens, tenham vindo dessa influência. Quando minha avó me disse ‘a mulher mais bela, é aquela que vê a lua de dia’ me fez enxergar a beleza em mim, tocando algo que eu mais tinha: a imaginação. “ É nessa imaginação que se comunica com a nossa que nos refugiamos ao adentrar no mundo de Larissa durante essa exposição.

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Jess Vieira

Artista visual, pós-graduanda em Estudos Brasileiros pela FESP-SP https://jessvieira.com